quarta-feira, 23 de março de 2011

MARAVILHOSA GRAÇA

Fui criado em uma igreja que estabelecia limites distintos entre “a
dispensação da Lei” e a “dispensação da Graça”. Embora
ignorássemos muitas proibições  morais do Antigo Testamento,
tínhamos nossos próprios mandamentos prediletos rivalizando com os
dos judeus ortodoxos. Lá no alto vinham o fumo e a bebida (contudo,
como estávamos no Sul, com a sua economia dependente da tabaco,
algumas permissões eram feitas para o fumo). O cinema vinha logo
abaixo desses vícios, com muitos membros de igreja recusando-se
até a assistir a  The Sound of Music [O som da música]. O rock,
naquela época, na infância, era  igualmente considerado como uma
abominação, com toda probabilidade demoníaca em sua origem.

Outras proibições – usar maquiagem e jóias, ler o jornal
dominical, assistir ou participar de esportes aos domingos, homens e
mulheres nadando juntos (curiosamente intitulados de “banho
misto”), comprimento das saias para as moças, comprimento dos cabelos para
os rapazes – eram obedecidas ou não, dependendo do nível espiritual da
pessoa. Cresci com a forte impressão de que uma pessoa se tornava
espiritual obedecendo a essas regras sem significado. Considerando minha própria vida, eu não conseguia
perceber muita diferença entre as dispensações da Lei e da Graça.
Minhas visitas a outras igrejas me convenceram de que essa
escada para atingir a espiritualidade é quase universal. Os católicos,
os menonitas, as Igrejas de Cristo, os luteranos e os batistas do sul,
todos têm suas próprias agendas de usos e costumes do legalismo.
Você obtém a aprovação da igreja, e presumivelmente de Deus,
seguindo o padrão prescrito.
Mais tarde, quando comecei a escrever a respeito do problema
da dor, encontrei outra forma de não-graça. Alguns leitores levantaram objeções 
à minha simpatia com aqueles que sofrem. As pessoas sofrem porque merecem, 
elas me diziam. Deus as está punindo. Tenho muitas dessas cartas em meu arquivo, 
declarações modernas dos “provérbios de cinza” dos amigos de Jó.
No seu livro  Guilt and Grace [Culpa e Graça], o médico suíço
Paul Tournier, um homem de  profunda fé pessoal, admite:  “Não
consigo estudar com você este sério problema da culpa sem levantar
o fato óbvio e trágico de que a religião – a minha própria como
também a de todos os crentes – pode esmagar em vez de libertar”.
Tournier fala de pacientes  que o procuraram: um homem
abrigando culpa por causa de um antigo pecado, uma mulher que não
podia esquecer de um aborto que fizera há dez anos. O que os
pacientes realmente buscam, diz Tournier, é graça. Mas, em algumas
igrejas encontram a vergonha, a ameaça do castigo e um sentimento
de julgamento. Resumindo, quando procuram graça na igreja, com
freqüência encontram não-graça.
Uma mulher divorciada contou-me que estava no santuário de
sua igreja com sua filha de 15 anos de idade quando a esposa do
pastor se aproximou. “Ouvi dizer que você e seu marido estão se
divorciando. O que não consigo entender é, se vocês amam Jesus,
por que estão fazendo isso?” A  esposa do pastor nunca havia
conversado com a minha amiga antes, e sua dura repreensão na
presença da filha deixou-a perplexa. “A  dor  estava  no  fato  de  que  eu
e meu marido amávamos Jesus de coração, mas o casamento haviase quebrado além do conserto.
Se ela apenas tivesse me abraçado e dito: “Eu sinto muito...”.
Mark Twain costumava falar de pessoas que eram “boas no pior
sentido da palavra”, uma frase que, para muitos, capta a reputação
dos cristãos de hoje. Recentemente, estive fazendo uma pergunta a
pessoas desconhecidas – pessoas sentadas ao meu lado no avião, por
exemplo – quando buscava dar início a uma conversa. “Quando eu
digo as palavras ‘cristão evangélico’, no que você pensa?” Em
resposta, ouço principalmente suas descrições políticas: ativistas
barulhentos a favor da vida, ou oponentes aos direitos dos
homossexuais, ou proponentes para censurar a Internet. Ouço
referências à Maioria Moral, uma organização desbaratada anos atrás.
Nenhuma vez – uma única vez sequer – ouvi uma descrição com
fragrância de graça. Aparentemente, esse não é o aroma que os
cristãos distribuem pelo mundo.
H. L. Mencken descreveu um puritano como uma pessoa com
um medo obsessivo de que alguém, em algum lugar, seja feliz; hoje,
muitas pessoas aplicariam a mesma caricatura aos evangélicos ou
fundamentalistas. De onde vem essa reputação de retidão sem
alegria? Um artigo da humorista Erma Bombeck nos dá uma pista:
Domingo passado, na igreja, eu prestava atenção a uma
criança que se virava para trás e sorria para todos. Ela não
estava fazendo nenhum barulho, nem estava cantarolando,
 ou chutando, nem rasgando os hinários, nem mexendo na bolsa
da mãe. Apenas sorrindo. Finalmente, sua mãe olhou para ela
com cara feia e num sussurro teatral que poderia ser ouvido
em um pequeno teatro da Broadway, disse: “Pare de sorrir!
Você está na igreja!”. Em seguida, deu-lhe um tapa e, quando
lágrimas começaram a rolar pela face da criança, a mãe
acrescentou: “Assim é melhor”, e retornou às suas orações...
Subitamente, eu fiquei zangada. Percebi que o mundo inteiro
está em lágrimas e, se você não está chorando, é melhor
começar. Eu quis abraçar aquela criança com o rosto molhado
de lágrimas e lhe falar a respeito do meu Deus. O Deus feliz.
O Deus sorridente. O Deus que precisava ter senso de humor
para ter criado gente como nós... Por tradição, as pessoas
usam a fé com a solenidade de acompanhantes de enterro, a
seriedade de uma máscara trágica e a dedicação de um
participante do Rotary.
Que loucura, eu pensei. Aqui está uma mulher sentada ao
lado da única luz ainda existente em nossa civilização – a
única esperança, nosso único milagre – nossa única promessa
de infinidade. Se ela não podia sorrir na igreja, para onde
deveria ir?
Essa caracterização de cristãos certamente está incompleta,
pois conheço muitos cristãos que personificam a graça. Mas em
algum ponto da história a igreja conseguiu receber uma reputação de
falta de graça. Como orou uma menininha inglesa: “Ó Deus,
transforme as pessoas ruins em pessoas boas, e as pessoas boas em
pessoas agradáveis”.
PHILIP YANCEY
Texto extraído do livro “Maravilhosa Graça”, ed. Vida,
págs.28/31.

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